Entice


São dez horas da manhã e lá está ela, o vestido é feminino e inocente, preto ele cobre metade de suas coxas brancas como açúcar, e tão doces quanto. O sapato quebra a inocência trazendo uma determinação inigualável, com passos fortes ela desce a rua, pé ante pé, o salto parece ignorar o chão tortuoso do calçamento esburacado. A última coisa que avisto pela janela é a posição das mãos, que mantém um ritmo similar ao dos passos largos, o cabelo parece seguir a deixa num movimento absolutamente uniforme, ela flutua em câmera lenta ao entrar pela porta do prédio.

Me preparo para recebê-la simulando surpresa, meus pés vão para a mesa e as mãos logo se encarregam de buscar o primeiro manuscrito que conseguem alcançar na mesa de madeira. Enquanto leio falsamente as palavras porcamente impressas pela impressora defeituosa minha cabeça tenta manter o controle da situação: ela está na portaria, ela está esperando o elevador, entrou no elevador, a porta abriu, lá vem ela...

Levanto os olhos do papel para olhar através do cubículo de vidro, vejo apenas seu rosto surgindo por trás das horrendas divisórias como o Sol nascendo no horizonte, os olhos dela rapidamente me localizam, os cílios pesados fazem cena para o olhar firme, ela quer mostrar para que veio, a determinação impressa na testa levemente franzida, mas o batom vermelho está lá, como se mesmo que por descuido ela tentasse me agradar.

Meus olhos voltam para o manuscrito assim que o barulho dos sapatos fica audível, mesmo que abafados pelo carpete empoeirado, ouço a porta de vidro batendo na maçaneta metálica, o perfume invade o cubículo e o couro da cadeira soa satisfeito quando ela senta.

Levanto meus olhos e pergunto com uma voz firme: "Esqueceu algo Hanna?", ela parece ignorar todos os funcionários que ainda parecem estasiados pela sua entrada e insistem em olhar pelas - nada privativas - paredes do lugar, a bolsa vai ao chão, as pernas se cruzam e ela se faz confortável... "Precisamos revisar o último parágrafo, - me diz - não gostei do final".

Coloco o manuscrito na mesa e os pés novamente no chão, concordo com um olhar e um maneio de cabeça e complemento: "Vamos reescrevê-lo juntos, mas não aqui...", anoto num papel a hora o e o lugar, e ela sai com um sorriso no rosto.